Maria, filha de Maria, a filha de Maria, tem trinta e um desgostos. Lava a roupa, lava a louça, varre que varre, e a patroa - Jesus Maria José! - a patroa ralhando.
Aos
sete anos, foi esquecida pela mãe na primeira esquina.
Mulher
cheia de filhos, não podia com mais um: deu a pobre da Maria.
Sempre
em casa estranha, dormindo em cama-de-vento, comendo em pé ao lado
do fogão. Trabalhadeira, era de confiança e não tinha boca para
pedir. Pálida, vivia debaixo de chá de ervas. Sonhando, rilhava os
dentes, com as bichas alvoraçadas. Maria, ai dela, nunca soube qual
o gosto de uma pêra-d'água! O guarda-comida trancado a chave, ela
roía com fome um naco de rapadura, escondida sob o travesseiro.
Lenço
amarrado na bochecha, usava cera milagrosa para dor de dente - até
que perdia o dente. Vagarosa por culpa de unha encravada. De lidar na
potassa, partiam-se os dedos e sofria de panarício. Nunca se
despedia, foi despachada pela patroa, aborrecida de suas aflições e
sua cara de pamonha. Ao rolar de uma para outra casa, engordava com
os anos, gemia de dor nas cadeiras e enleava-se no serviço. Sua
alegria era lavar o cueiro do bebê. Ah, mas beijar a criancinha...
_
Está proibida, ouviu, Maria?
Criada
não conhece o seu lugar, podia ter alguma doença.
Menina
séria, não ia ao baile com as outras. No carão anêmico esfregava
papel de seda escarlate molhado na língua e, mal surgia à janela, a
espiar um soldadinho verde, a patroa ralhava.
-
Maria, já escolheu o arroz?
-
Maria, já passou a roupa?
-
Já encerou a casa, ó Maria?
Areada
a chapa do fogão, guardada a louça, varria a cozinha, chegava-se
medrosa à porta. O soldado rondava, parava, batia continência.
Tinha pressa como soldado era de guerra: queria pegar na mão e
cobrir de beijos.
-
Deus me livre, podia ter alguma doença!
Maria
faz o sinal-da-cruz: a boca só o marido é que iria beijar.
Onde
estão os praças da cavalaria, o tinir das esporas na calçada?
Trinta e um anos de Maria! Até proibida de passear com Marta.
-
Pois vá chorar no quarto - ordena-lhe a patroa - Não suporto cena
de gentinha!
-Essa
Maria, um objeto da casa, o capacho da porta, a vassoura no prego:
Maria
não vai ao circo, o palhaço é tão gozado.
Maria
não vai ao Passeio Público ver macaquinho comer banana.
Maria
não vai ao cineminha na Sexta-feira assistir a Vida , Paixão e
Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Maria,
a filha de Maria, distraída no Domingo com a Marta, viu seu coração
rolar do peito e, prato que lhe escapou dos dedos gordurosos (a
patroa vai ralhar?) , partir-se em sete pedaços de sangue pelo chão.
Era
um cabo? Maria nunca soube de que arma. Falava lindo e tão difícil,
puxando no xis visto, mocinha? - que ela, a saltitar ora numa perna
ora noutra, esganada roía as unhas.
-
Tem gente, cabo. Você me respeita," Ô cabo!
Ele
a levou ao circo e Maria entrou soberba como uma patroa entre a
gentinha que fazia cena; no pescoço a velha pele de coelho mordendo
a causa. A charanga, o peludo de cara pintada, o cabo das grandes
botas de general . Um palhaço xinga outro de "Gigolô! " o
circo vem abaixo de tanta gargalhada. Maria sorri, o cabo lhe tira o
sangue do peito.
-
Ocê me deixa louco, Maria.
Sob
o espanto do baleiro, anunciando "Ói a bala oi...". ela
beijou a mão do cabo.
Em
nove meses Maria, filha de Maria, vai ser mãe de Maria.
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