AMOR
ALÉM DA VIDA
Reza
a lenda que de sua primeira encarnação subiu íngremes montanhas de cascalhos
mortais, alimentando-se de cascas de jatobá, e mitigando a sede com os escassos
Cipós-d’água que encontrava em seu
itinerário.
Em
momento algum as mortificações físicas puderam alquebrar-lhe o espírito. Não
vertera uma única lágrima.
Foram
quatro dias, quatro noites até chegar ao seu destino de carnificina.
O
aço de sua espada perdeu o brilho ao assassinar sua primeira presa, que cochilava
no posto de vigilância mais avançado: uma das mãos comprimindo a boca e o nariz
da vítima; a outra forçando passagem com a lâmina letal, rasgando pele,
músculos, entranhas, ossos, músculos, pele, até surgir do outro lado do corpo
que voltava a dormir, agora para sempre.
Depois
desse, foram outros três vigias, cujas mortes similares sugeriam uma encenação
macabra. Ao fim da noite, dezoito pessoas jaziam, alguns pelo caminho, outros
em seus leitos. Um único homem, sentado em uma enorme cadeira de carvalho
negro, ainda retinha o fôlego da vida que lhe escapava da ferida aberta no
peito. Os olhos dilatados miravam um menino posto sobre a mesa em decúbito
dorsal, seu primogênito. O assassino ergueu a espada em manobras marciais ágeis
e sincronizadas. O menino não teve tempo de gritar, quem gritou e chorou antes
de morrer foi o homem que já deslizava pelo braço da cadeira, a qual nem por
isso perdeu seu equilíbrio imóvel.
Em momento algum as mortificações físicas
puderam alquebrar-lhe o espírito. Não vertera uma única lágrima.
Pronunciara uma frase apenas, ao nascer do
quinto dia:
̶ Tal qual me fizeram, vim e lhes fiz o mesmo!
Já
em sua segunda encarnação, montara tocaia sobre um lajedo em um dos flancos de
um desfiladeiro. Ficara deitado ali, estático, por mais de trinta horas. À
noite, o frio enregelava-lhe todas as articulações do corpo. De dia, com o sol
em zênite, sentia o corpo fritar sobre a pedra escaldante. Os lábios partiam-se
e sangravam em consequência da desidratação.
Em
momento algum as mortificações físicas puderam alquebrar-lhe o espírito. Não
vertera uma única lágrima.
O
rifle Winchester, calibre 44 apontava para baixo. Pela alça de mira, via-se o
estreito caminho, distante dali não menos do que trezentos metros. Aos poucos,
o bando de aborígenes ocupou todo o espaço do grotão afunilado. O atirador
suspendeu a respiração, fechou o olho esquerdo sobre a coronha da arma e
disparou dois tiros quase que simultâneos, embora cada qual dirigido a um dos
extremos da farândola de indios. Mortos à testa e à retaguarda do pelotão, os
selvagens não se decidiam por qual rumo tomar. Os tiros que se sucederam,
tinham os mesmos destinos dos anteriores, abatendo um índio à frente, outro
atrás do aglomerado em pânico. Em menos de um minuto, todos foram mortalmente
alvejados. Não obstante a rapidez com que tudo acontecera, ao descer a encosta
arenosa, com a Winchester em bandoleira, contabilizava 34 mortes. Percorreu
toda a área da chacina e encontrou um selvagem que agonizava. Pousou o cano
quente da arma entre os olhos esbugalhados do moribundo, exatamente onde
começava uma listra negra de tinta que ia até a ponta do nariz, cujas ventas
dilatavam no estertor de seu martírio.
̶
Dooda... dooda! ̶ , dizia o índio. O justiceiro não conhecia o
idioma navajo, mas pôde entender aquela palavra, o que não poderia era atender
a ela. O disparo ecoou no desfiladeiro, o índio permaneceu com seus olhos muito
abertos. Agora uma listra de sangue escorria por sobre a pintura negra que lhe adornava o nariz.
Preso à tanga do cadáver, ele reconheceu a escalpo da esposa e da filha. Lisos
e dourados, os cabelos esvoaçavam ao sabor do vento.
Em
momento algum as mortificações físicas puderam alquebrar-lhe o espírito. Não
vertera uma única lágrima.
Dizem
que de sua terceira encarnação, preparara um carneiro guisado para vinte
comensais. Todos soldados, tendo entre 25 e 30 anos de idade. Passados quinze
ou vinte minutos, espasmos musculares dolorosos e dificuldade em respirar
puseram em pânico os convivas que compunham a mesa. Ao guisado, ele
acrescentara uma poderosa dosagem de estricnina. Entre gemidos e súplicas, as
vítimas do irreversível envenenamento, arrastavam-se pelo chão, ora escumando
pela boca, ora regurgitando golfadas hemorrágicas, compondo um genuíno circo
dos horrores.
Em
momento algum as mortificações físicas puderam alquebrar-lhe o espírito. Não
vertera uma única lágrima.
Assistira
impressionado à resistência do último soldado a morrer: ou porque comera menos
do que os outros, e portanto ingerira menos do veneno, ou porque sua
constituição física lhe garantia maior tolerância àquela droga. De qualquer
forma, sua luta pela vida também chegava ao fim. Provavelmente, pela pouca
idade, antes do espasmo derradeiro, clamava o socorro materno. Por três vezes,
enquanto a energia vital lhe abandonava o corpo contaminado, balbuciou:
̶
Mãe... mãe... mãe...
O
gourmet assassino pôde então reviver na memória o pelotão de fuzilamento
atirando contra sua mulher e seu filho, este protegido pelo abraço daquela.
Após a saraivada, ouvia-se, extinguindo pouco a pouco, a voz chorosa do menino:
̶
Mãe... mãe... mãe...
Em momento algum, as mortificações
físicas puderam alquebrar-lhe o espírito. Não vertera uma única lágrima.
Muito tempo transcorreu. Porém em sua
última encarnação, passou duas horas preso em um trânsito desumano. Por dez
horas, sem comer e sem beber, analisando documentos fiscais, planilhas e
gráficos, não conseguiu detectar o rombo financeiro sofrido pela empresa em que
trabalhava. A demissão era inevitável. Os insultos do patrão, previsíveis.
Em momento algum as mortificações
físicas puderam alquebrar-lhe o espírito. Não vertera uma única lágrima.
Em casa, mais cedo que o normal, encontrou
a mesa posta, a esposa em seu vestido vermelho de renda. O corpo exalando o
perfume de um banho recente. Lisos e dourados, os cabelos esvoaçavam ao sabor
do vento que entrava pela janela da sala. A filhinha dormia no sofá. Seus
cabelos lisos e dourados escondiam um pequeno urso de pelúcia. Foi então,
segundo contam, que a esposa sorriu para ele, o semblante ávido de amor. E ele
pôde ver a própria imagem nos olhos dela. Estava sério, estranhamente, a
fisionomia transmudada.
Nesse momento as mortificações físicas puderam
alquebrar-lhe o espírito, e ele vertera uma infinidade de lágrimas. Chorou por
um longo tempo, abraçado à esposa a quem tão bem desejava. Depois, finalmente,
desencarnou!
Amei esse blog.
ResponderExcluirParabéns!