Era uma vez um menininho, de carne e osso,
igual a tantos que se deleitam nas coisas simples que a vida dá. Ria nos seus
mundos de faz de conta, voava nas asas dos urubus, assustava os peixes, nariz
achatado nos vidros dos aquários, assobiava para os perus, andava na chuva.
Todas estas coisas que as crianças fazem e os adultos desejam fazer e não
fazem, por vergonha. Sua vida escorria feliz por cima do desejo.
Não sabia que uma conspiração estava em
andamento. Tudo começara bem antes, quando um nome lhe fora dado. Nome do pai.
Claro, confissão de intenções: que o menino sem nome e sem desejos aceitasse
como seus o nome e desejos de um outro que ele nem mesmo conhecia. Filho,
extensão do pai, realização de desejos não realizados, sobrevivência do seu
corpo, uma pitada de onipotência, uma gota de imortalidade.
"Que é
que ele vai ser quando crescer? Médico? Diplomata? Cientista?"
E as
conversas se prolongavam, temperadas com sorrisos e boas intenções, enquanto
silenciosas se teciam as malhas do desejo em que pai e mãe esperavam colher/
acolher/ encolher o menino dos desejos simples...
Até que
chegou o dia em que lhe foi dito: “É preciso ir para a escola. Todos os meninos
vão. Para se transformarem em gente. Deixar as coisas de criança. Em cada
criança brincante dorme um adulto produtivo. É preciso que o adulto produtivo
devore a criança inútil.”
E assim
aconteceu. Há certos golpes do destino contra os quais é inútil lutar.
O menino de carne e osso aprendeu coisas
curiosas: nomes de heróis, frases que teriam dito, as alturas de montes onde
nunca subiria, as funduras de mares onde nunca desceria, a distância de
galáxias, o 'SE', partícula apassivadora, o "se", símbolo de
indeterminação do sujeito, nomes de cidades de países longínquos, suas populações
e riquezas, fórmulas e mais fórmulas...
Sabia que tudo aquilo deveria ter um
motivo. Só que ele não entendia. O desejo permanecia selvagem. E disto eram
provas aquelas notas vermelhas no boletim, testemunhas de como o menino
cavalgava longe do desejo dos outros, conspiradores secretos, escondidos na
monotonia dos currículos que não faziam o seu corpo sorrir...
"Pra que serve tudo isto?", ele
perguntava. E o pai respondia, sábio e paciente: “Um dia você saberá. Por hora
basta de saber que papai sabe o que é melhor para seu filho...”
O menino
cresceu. E aconteceu que, em meio às suas rotinas, veio a se encontrar com dois
cavalheiros bem-vestidos e de fala branda, que se puseram a contar estórias de
um mundo encantado sobre o qual ele nunca ouvira falar. Eles disseram de heróis
em aventais brancos cavalgando microscópios e telescópios, brandindo máquinas
fantásticas e aparelhos misteriosos, em meio a líquidos mágicos que faziam
viver e morrer, encastelados em templos onde as coisas visíveis ficavam
invisíveis e as coisas invisíveis ficavam visíveis, e lhe disseram de prodígios
de verdade, e lhe perguntaram se ele não desejava se transformar num mago, num
artista... A recompensa? O Poder, o conhecimento de segredos que ninguém
conhece, a glória, ser olhado por todos como um ser diferente, sublime,
superior. Se os seus prodígios fossem maiores que os de todos, ele poderia
aparecer no palco supremo da ciência, em país distante, onde os mortais se
revestem de imortalidade...
O menino grande se lembrou dos sonhos do
menino pequeno. E sorriu. Finalmente, chegara o momento da sua realização.
Estranhou que os narizes dos respeitáveis cavalheiros tivessem crescido enquanto
falavam. Mas, logo o tranquilizaram: “É só para te cheirar melhor, meu
filho...”
Começaram as transformações. Primeiro os
olhos. Já não refletiam outros olhares e nem borboletas...
Aprenderam a concentração, a disciplina.
Depois o corpo, que desaprendeu a dança, o voo dos papagaios e o brinquedo. Era
necessário dedicar-se totalmente. Os pensamentos abandonaram as fantasias e os
contos de fadas. Passaram a morar no mundo das fábulas e dos experimentos. Até
o prazer da comida se satisfez com os sanduíches rápidos do almoço, e na cama o
corpo se esqueceu do corpo...
E aprendeu
coisas preciosas. Que o corpo do cientista é neutro. Que ele não se comove por
considerações de valor ou prazer. Que está acima da vida e da morte (isto é
coisa de políticos, militares e clérigos), em dedicação total ao saber.
Bastava-lhe ser um devotado servidor do progresso da Ciência.
Mas tantos sacrifícios acabaram por receber
merecida recompensa. A sorte soprou, favorável, e de seu corpo diferente surgiu
uma nova magia, e o palco da imortalidade lhe foi aberto. Lá, perante todos,
compreendeu que valera a pena. Duas lágrimas lhe rolaram pela face.
Já não era o menino de outrora, carne e
osso, crescera. Estava diferente. Os aplausos de madeira enchiam a sala. Era a
glória. E foi então que o milagre aconteceu. O recinto se encheu de suave
luminosidade, e a Mosca Azul, que até então só habitava os seus sonhos, veio de
longe e roçou o seu rosto com suas asas. E a grande transformação aconteceu.
Era um boneco de madeira, inteligência pura, sem coração. E os milhares de
bonecos, iguais, de pé, não paravam de tamanquear os seus aplausos ao novo
irmão, enquanto gritavam o seu nome: ”Pinóquio, Pinóquio , Pinóquio...”
(Rubem Alves)
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