Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, é obra que se destaca do contexto literário romântico brasileiro. Publicado em folhetim de junho de 1852 até julho de 1853, depois em dois volumes, um em dezembro de 1854, outro em janeiro de 1855, esse romance sofre o silêncio da crítica. A primeira justificativa para tal atitude está no fato de sua narrativa não apresentar elementos que atendam ao gosto do público burguês da época, não só no tom, que é escrachado, irônico, mas também na história apresentada e no tipo de personagem que a interpreta.
O desvio aos padrões românticos já se percebe pela origem do protagonista, filho de uma pisadela e de um beliscão – estranha forma de cortejo entre seu pai (Leonardo Pataca) e sua mãe (Maria Saloia) que garantiu a atribulada união do casal. Nasce daí Leonardinho, que já de bebê mostra-se um tormento, com sua capacidade de chorar uma oitava acima do normal. Na infância, a melhor definição para seu comportamento é “flagelo”, tal o terror que causa aos que o rodeiam.
Uma importante mudança efetiva-se ainda na meninice. Seu pai flagrou Maria Saloia em flagrante de adultério, o que provoca a separação (espalhafatosa, por sinal) do casal e o abandono da criança nas mãos do padrinho, o Barbeiro.
Na realidade, deve-se lembrar que Leonardo Pataca é figura pândega que por muito tempo sofrerá nas mãos do Amor. Pouco depois da separação, apaixona-se por uma cigana, que o abandonará. Na esperança de reconquistá-la, chega a participar de um ritual de magia negra, o que o faz ser humilhantemente preso pelo temido chefe da polícia do Rio de Janeiro da época, o Major Vidigal. Ainda assim, ao descobrir que o motivo do desprezo é a presença de um outro homem, um padre (Mestre de Cerimônias), apronta vingança extremamente maquiavélica: com a ajuda de um amigo, Chico-Juca (tremendo arruaceiro), consegue causar imensa confusão na festa de aniversário da cigana, provocando a prisão de vários presentes, inclusive do sacerdote, que estava, em roupa íntima, no quarto da cigana. Por esses elementos percebe-se o tom do romance, em que predomina a movimentação constante, intensa. Parafraseando um importante crítico, Antônio Cândido, há a impressão de uma intensa sarabanda.
Complicações também vão existir do lado de Leonardinho. Seu padrinho entrega-se todo ao menino, estragando-o com tanto mimo, tal qual o protagonista de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Seu projeto é transformá-lo em padre, mas o garoto é um completo desastre na escola. Nem mesmo sua atividade como coroinha é perfeita, pois, tão mais preocupado em brincar e aprontar do que em exercer sua função corretamente, acaba sendo expulso.
Assim, de fracasso em fracasso, Leonardo acaba-se tornando um exemplo perfeito da vadiagem. Até que surge uma interessante oportunidade: casar-se com a abastada Luisinha, sobrinha da rica D. Maria. Porém, Leonardo precisa vencer dois obstáculos para conquistar o coração de sua amada: o caráter desligado de Luisinha e a concorrência do esperto José Manuel. A Comadre, sempre protetora do afilhado, consegue eliminar o rival, atribuindo-lhe falsamente a responsabilidade do rapto de uma moça.
No entanto, o romance passa a impressão de que as personagens das classes baixas não são donas de sua vida, como se estivessem nas mãos do acaso – o que as deixa numa posição extremamente injusta. Dessa forma, a vida de Leonardo sofre um desajuste extremo. Com a morte do Barbeiro, o rapaz volta a ficar sob a guarda do seu pai, num ambiente mergulhado de desentendimentos, o que provoca sua fuga – é o momento em que reencontra o amigo de traquinagens dos tempos de coroinha e, morando agora com este, conhece Vidinha, por quem se apaixona. O projeto de casamento é esquecido, o que é vantagem para José Manuel, que, com a ajuda do Mestre de Rezas, tem seu lugar garantido na casa de D. Maria e, consequentemente, alcança o casamento.
Ainda assim, a dança da narrativa não para. A situação em que Leonardo está não é estável. Seu enlace amoroso com Vidinha irrita dois primos dela, que já a disputavam. Dessa forma, tramam contra o intruso invocando a autoridade legal: Leonardo quase é preso por crime de vadiagem. Sua sorte é conseguir fugir, num lance que deixa Vidigal extremamente irritado com a afronta. Só escapa da vingança do poderoso porque a Comadre arranja-lhe um emprego na Ucharia (espécie de almoxarifado) Real, o que o afasta do crime de vadiagem.
No entanto, num episódio muito engraçado, Leonardo é flagrado em situação inadequada (“tomando caldinho”) com a esposa de um funcionário da Ucharia, o Toma-Largura. Tal escândalo tem consequências complicadas. A primeira é a perda do emprego. A segunda é a explosão de ciúme de Vidinha que, ao saber do motivo da demissão, vai tomar satisfações na Ucharia. Leonardo segue-a, na tentativa de impedi-la de levantar mais escândalo, mas, antes que entre no antigo local de trabalho, acaba preso por Vidigal.
O encarceramento provoca a aproximação entre Vidinha e Toma-Largura e a elevação de Leonardo a soldado (granadeiro). Ainda assim, nosso protagonista não se acerta, pois acaba detido quando é flagrado participando de uma brincadeira em que se ironizava o Major (Papai Lelê Seculorum) e novamente quando se descobre que ajudou na fuga de um procurado pela polícia, o Teotônio. Na realidade, essas faltas revelam uma fraqueza de caráter motivada mais pela bondade de Leonardo do que por uma suposta malignidade.
Por infringir demais a ordem, o castigo de Leonardo pode incluir algo mais grave do que o encarceramento: chibata. A Comadre e D. Maria vão, então, interceder junto a Vidigal e, para tanto, utilizarão uma pessoa bastante influente: Maria Regalada, caso antigo do policial. Com a intervenção delas e principalmente com a promessa de que, em troca, finalmente iria morar com Maria Regalada, Vidigal não só liberta Leonardo, mas também o promove a sargento de milícias.
A partir de então a narrativa assume estabilidade. Morre José Manuel, Luisinha fica viúva para pouco depois se casar com Leonardo, que, tendo dado baixa de seu cargo, pode garantir uma situação tranquila para sua esposa.
O enredo acima é elemento suficiente para mostrar o caráter sui generis da obra. Não há aqui a visão idealizada da realidade, mas uma inversão escrachada desses padrões. No lugar de heróis perfeitos, há anti-heróis, como Leonardo, que é vadio, e Luisinha, que é destituída de beleza e força de caráter. Tais elementos fazem com que alguns considerem a obra uma antecipação do Realismo, o que constitui um exagero, pois falta aqui o cientificismo, além da visão pessimista da existência humana.
Aliás, a classificação desse romance é um tanto problemática. Se ao menos enxergar nela uma antecipação do Realismo é inadequado, é também impróprio considerá-lo um romance de costumes, em especial os do Rio de Janeiro do início do século XIX. Seria argumento favorável a essa classificação o expediente comum de quase todos os capítulos iniciarem-se com a descrição de um costume, como a festa dos ciganos, a procissão dos ourives, o desfile das baianas. Outro argumento seria a pobreza de nomes, o que faria suas personagens tornaram-se tipos, ou seja, representantes das diferentes classes sociais fluminenses da época (o Barbeiro, o Mestre de Cerimônias, o Tenente-Coronel, o Mestre de Rezas). No entanto, há como derrubar tal tese lembrando que esse simples fato pode ser na realidade creditado à fidelidade ao comportamento das classes baixas. Outro contra-argumento é a ausência na obra de muitos costumes da época.
Pode-se lembrar, também, que Memórias de um Sargento de Milícias seria um romance picaresco. É, porém, outra classificação problemática, pois esse termo refere-se a um tipo de narrativa espanhola que apresentava personagens dos baixos estratos sociais e que praticavam crimes para driblar as dificuldades, principalmente fome. Não se deve esquecer que Leonardo não é um autêntico pícaro, pois está fixo ao Rio de Janeiro, não passa por dificuldades, nem sequer é personagem carregada de malignidade. Aceita-se, no entanto, tal rótulo se se adaptar a ele a ideia de malandragem. Assim, Leonardo seria o representante do malandro carioca. Até essa identificação merece ressalva, pois suas características não se prendem ao Rio de Janeiro, podendo ser encontradas em várias partes do país. Aceitando-se tais restrições, percebe-se que a obra cumpre um postulado romântico ao exibir um tipo brasileiro, apesar de bem diferente do índio, do sertanejo ou do burguês dos outros romances contemporâneos.
Na realidade, para compreender Memórias de um Sargento de Milícias, deve-se aceitar todos essas classificações com cuidado e buscar outro aspecto marcante: a capacidade de descrever formas de comportamento social que espantosamente ainda são comuns hoje. O primeiro deles está nas constantes relações de apadrinhamento. As leis são sempre rígidas, mas com uma relação subterrânea, com os contatos certos, muito se consegue. Basta lembrar como a Comadre arranja emprego para Leonardinho, a possibilidade de D. Maria também lhe arranjar um emprego de rábula em algum cartório e até a maneira como Leonardo Pataca sai da prisão graças ao Tenente-Coronel. O outro aspecto está na confusão fácil que se faz entre Ordem e Desordem. Basta lembrar em que condições o Mestre de Cerimônias foi preso (de roupa íntima), ou mesmo como Major Vidigal recebeu as três advogadas do protagonista – meio formal (farda), meio informal (camisolão e tamancos). Mas o principal exemplo disso seria Vidigal, representante da ordem, ceder a impulso carnais e (passando para a desordem) soltar Leonardinho, que, representante da desordem, é promovido a sargento de milícias (passando para a ordem).
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